24h Coruche 2019
A ideia
O trabalho de casa
A inscrição
A véspera
O 24h
Pós corrida
O regresso ao quotidiano
A idea
Ora, o meu amigo Honda falava de certos eventos como o 24h Lisboa e afins. Eu nunca tive chance de participar nestes eventos por falta de condições. Os anos passaram e fui ganhando mais recursos e melhor preparação física. Em Janeiro de 2019, os astros alinharam se: vou participar num 24h!
O trabalho de casa
A bike
Falta um semestre para o evento e eu não sei de nada. Calmamente comecei a olhar para a "garagem", para as bikes que eu tinha acumulado com o tempo: Canyon Nerve ESX 7.0 '08, Cannondale 29er Trail 4 '13, GT Freestyle BMX e B'Twin Hoptown 320.
Uma bike fully, uma hard tail, uma commuting bike e uma bmx… Uma bike roda 29, outra de roda 26 e duas de rodinha 20.
A bike mais fiável seria a hard tail. Com esta decisão, comecei a focar nas peças que teria de adaptar para o evento.
O treino
Com a Cannondale em mente, iniciei uma longa pesquisa de equipamento. Em simultâneo, eu continuei com o meu treino que era simplesmente ir para o trabalho de bike, numa rodinha 20 desdobrável. Todos os dias, quer faça sol, quer faça chuva, há 5 anos.
Pondo o treino físico de parte, eu precisava de preparar a mente e no ano anterior eu já havia ido a Fátima 3 vezes. Estou a falar de saídas de 14 horas a pedalar, de sair de casa às 5h00, depois duma semana a trabalhar. Isto foi mais um fator que ajuda a mentalizar para o sofrimento que estava por vir.
A bike II
Em Fevereiro tomei a decisão de participar no evento como solo single speed, porém não entendia coisa alguma desta categoria, excepto o seu baixo orçamento. Era só uma velocidade e isso punha em pé de igualdade com os demais ciclistas. A diferença aqui era peso, idade e gear ratio.
Em conversas com o Honda, reparei que em Coruche há questões como topografia, postos de abastecimento, logística, comidas e adversários. Lá fui fazer o trabalho de cada e anotar as participações do ano anterior: quantos eram, quais os nomes, quais as bikes, tempos gerais e por volta, quantas voltas, quais as equipas pois apesar de serem solo eles poderão estar integrados em equipas regionais, podendo assim descobrir as tendas da malta.
Rapidamente vi que o desafio era apenas o amigo Honda e Filipe Matos, respectivamente 2° e 1° lugares.
O número 2 tinha uma bike em titânio, roda 26 com forqueta, v-brakes, 32-16T, 23 voltas, média de 9.5km/h e privado. O número 1 era profissional com 32-14T, 27 voltas, média de 14km/h e fazia parte da equipa Ribapedal BikeShop!
Com estes dados instaurei uma bateria de testes na Cannondale para achar a melhor mudança para mim.
A minha hardtail não estava em boa forma. Tinha a suspensão super degradada, os rotores estavam gastos, o selim tinha visto demasiadas primaveras e as rodas estavam cansadas. Com o meu baixo orçamento, fiz da roda traseira um tubeless do gueto. Melhor upgrade de sempre! Desmontei a roda traseira, limpei e meti fita nova. Introduzi uma câmara de ar roda 26 e de seguida cortei a mesma. Montei o pneu com muita dificuldade, injetei latex velho que havia descoberto no local de trabalho e enchi o pneu com um compressor. Não foi fácil pois o pneu tubeless ready gastou imenso latex. Foi neste momento que reparei a imensa kilometragem do pneu. Por outro lado, eu não fiquei preocupado pois iria participar como solo SS, onde não há muita exigência de tração e também faltava imenso tempo para a prova. Eu podia a qualquer momento comprar novos pneus.
Em março/abril comecei a ficar preocupado com o tempo a passar. Em várias saídas que fazia para o mato, reparei que a mudança número 3 era fixe em Monsanto. Estamos a falar do prato de 21T, em conjunto com o prato de 36T. Se a cena fosse mais rolante, 18 ou 17T era porreiro.
Primeiro desafio é: onde arranjar um pinhão 21T barato, corrente 8vel e qual o melhor tensor de corrente para testar isto tudo caso mude de ideias.
Após alguma procura na net, o grosso da comunidade sugeriu o On-One Groove Armada e Doofer combo. O pinhão Groove é em Cr-Mo com 3mm no encaixe do cepo, o que é positivo pois não deixa marcas de se enterrar no cepo, em especial se este for em alumínio. O tensor Doofer é brutal porque é simples e barato. Ambos ficavam por 18 e 12 euros, respectivamente. O meu problema era que os pinhões da On-One já estiveram a 12 euros, portanto, pagar 18 euros e se calhar pode não ser aquilo. Então, virei-me para os restos e sobras de materiais da labuta e em conjunto com um colega de trabalho, comecei a projetar uma peça para aparafusar um prato de 22T.
Estive literalmente 8 semanas a estudar as calculadoras de mudanças. Como seria a transmissão com 36-21T, 36-22T e se fosse 32-22T? E qual a velocidade resultante @70rpm? Com esta informação comecei a ver o que eu era capaz e também o que a concorrência era capaz! Mas vamos dar um passo de cada vez porque a teoria é muito bonita.
Na vida real, o pinhão improvisado era para ser feito em 1 peça em POM. Era complicado e fez-se em 4 partes de secção variável em acrílico. Aquilo estilhaça com uma pinta mas enfim… Fusion360, procurar restos de acrílico, cortar a laser et voilà. Aparafusar e falhou. Nova versão para levar porcas de embeber M8 e pronto. Assemblar, meter umas anilhas feitas de câmara de ar para o prato de aço não ferir o acrílico, apertar com os únicos parafusos de cabeça de embeber M8 que havia na empresa e agora sim, está pronto.
O pinhão entrou no cepo shimano que nem uma luva, até se ouvia o ar a passar devagarinho por entre as estrias do cepo. Apertei, montei a roda e seja o que Deus quiser.
Em maio dei início aos testes e a confrontar a realidade com a teoria. Devo salientar que na 2a semana do mês já tinha recebido o tensor Doofer e a corrente de 8vel.
Comecei com os 70RPM durante o meu commuting e não é que era verdade verdadeira!
Então, como rodas/pneus ETRTO 52-662, prato 36T e pinhão 22T:
- @50RPM dá 11.3km/h - estimativa de cadência nas subidas
- @60RPM dá 13.5km/h
- @70RPM dá 15.8km/h - velocidade cruzeiro com umas 8h no lombo
- @80RPM dá 18.0km/h
- @90RPM dá 20.3km/h
- @100RPM dá 22.5km/h - rolar nas zonas flat
- @110RPM dá 24.8km/h
- @120RPM dá 27.0km/h - dar lhe ali uns picos de aceleração
- @130RPM dá 29.3km/h
Ou seja, se o je consegue isto, como será no dia da prova? Tipo, 15.8km/h e 20 voltas? Ora 15.8km/h em 10 voltas dá 158km e em 20 voltas dá 316km… Por outro lado, cada volta tem aproximadamente 10km. Então, sem paragens, sem azares, eu faria 32 voltas!
E se as voltas têm 10km cada, quer dizer que na velocidade cruzeiro eu consigo fazer 40 a 45 mins por volta… Mas o Filipe Matos chegou a dar voltas de 30mins. Isto é, o #1 e #2 não pedalaram as 23 horas e não sei quantos minutos como indicado pela telemetria da prova.
Estudei também o material de iluminação. Comprei uma luzinha no Aliexpress, por 10 euros, com dois LEDs de 5V com saída USB para ligar ao powerbank. Passei imenso tempo à procura de powerbanks baratos e leves mas não é fácil pois para ser leve, tem de ter a bateria personalizada. Se for barato, é pesada. Lá descobri um em promo no AKI. Custava 14.90 euros e tinha 10 Amperes com duas saídas USB (uma de 1A e outra de 2.1A).
Fiz carregamentos e testei a descarga com a luz no máximo, médios e mínimos. Deu 7h, 9h30 e infinito, respectivamente.
Nesta fase, comecei a debruçar sobre a telemetria do percurso. Começa na praça de toiros e vai direto por uns terrenos e depois passa por uma estrada penosa, sempre a subir na saída de Coruche. Tem uma curva à esquerda e agora sim, há uma subida a pé. Depois anda se aos zig zags no topo da vila até chegar à igreja e depois tem uma descida rápida e outra curva a 90 graus à esquerda, subindo uma escadaria e mais uns zig zags até ao rio e passar para o outro lado. Aqui é a zona flat até à praça de toiros. Lá procurei videos no youtube e fiquei chocado com a exigência física e a pouca tecnicidade do percurso.
Em junho comecei a terminar as cenas que precisava na bike. Novos rotores Shimano de 7” e 6” centerlock, pads metálicas, e pouco mais. Meti o meu melhor selim, um Selle Italia XC, punhos ESI Grip Chunky e pronto. Também fui lendo várias opiniões sobre a abordagem, nutrição, mecânica e estratégias para provas de 24h. Nesta altura recebi o material de back up, caso eu achasse que a gear ratio não era ideal ou partisse: um pinhão Groove Armada de 20 e de 18T para trabalhar com um prato extra que eu tinha de 32T narrow-wide.
Comprei também várias barras energéticas da PowerBar e gel. Fiz as contas para comer uma barra por hora, logo preparei uma caixa com umas 20 barras, uns 12 gels e pastilhas isotónicas para 10L.
A inscrição
Fiz a cena em Abril e escolhi a opção dos pobres: paga, participa, 3 refeições quentes, duche de água fria e leva umas peúgas de brinde. Nada de jerseys e calções a condizer.
A véspera
À medida que o dito fim de semana aproximava, eu preparei a roupa, muda de roupa, capacete, material para o duche, tenda, comida, saco cama e etc.
Uma semana antes a organização divulgou uma foto do track e altimetria.
Altimetria 2019: dos 15 a 78m, desnível acumulado de 207m, declive máx de 24.3% e -17.4%, declive médio de 3.4% e -3.1%.
O track foi surpresa pois foi a primeira vez que a organização decidiu inverter o sentido de circulação. Agora no sentido oposto da rotação do planeta. Mal eu sabia que isto iria favorecer me. Yeah!
Deixei as minhas cenas e bike com o amigo Honda numa quarta ou 5a feira, para ele marcar o sítio das tendas e levantar dorsais e chips na 6a feira ao fim do dia e encontrarmos nos no sábado na estação de comboio Vila Franca de Xira.
A prova
Levantar as 8h, pegar no camelbak grande com algumas coisas necessárias para a prova como rações de papas de aveia e manteiga de amendoim, roupa, muda de roupa e tudo para ficar confortável. 9h já estava a apanhar o comboio em Santa Apolónia. Esperei até às 11h porque o Honda atrasou-se. Enganámo-nos na saída da autoestrada e chegámos ao 12h. Estacionar em segunda fila, tirar tudo do carro e meter nas tendas. Arranjámos miraculosamente o lugar próximo da tenda e dos WCs. A bike do Honda foi montada e depois a minha ou vice-versa, porém, a minha SS tinha o pneu tubeless do gueto em baixo. Enchi o pneu com uma bomba de ligar ao isqueiro do carro e funcionou! Meter cadeado nisto tudo e faltam 20 minutos. Fomos ao LIDL que ficava a 5 minutos da tenda e compramos os viveres como coca cola normal e red bull e fajitas (para misturar com a manteiga de amendoim). A prova começou e nós estávamos de regresso e por arrumar algumas coisas e vestir.
13h20
Tudo arrumado. Tendas fechadas. 10 gotas de óleo na corrente porque não havia mais no frasquinho. Telemóvel, 2 PowerBars e 1 gel nos bolsos do jersey, 2 pastilhas de isotónico no bidon e lá arrancámos!
O problema é que ao ponto de inicio não coincidia com a praça de toiros. Então entrámos a meio (aproximadamente ao kilómetro 6) e aparece um fiscal a explicar onde podíamos entrar mas fez nos esperar até quase todos passassem. Lá passámos debaixo da fita e, agora sim, arrancámos!
13h27 - zero voltas
A primeira volta, ou melhor, a primeira volta e meia foi mesmo para tentar perceber o percurso. Onde podia atacar, onde eram os postos de abastecimentos, quais as partes técnicas, onde era viável comer em andamento e onde fica a tenda durante o percurso. Esta volta e meia tentei também ir a um ritmo calmo para aquecimento.
15h - 2 voltas
Comi uma barra na subida para a igreja, uma água na igreja e começa a zona mais puxada do percurso. Foi algures aqui que deixei me guiar pelo instinto. Isto é, a SS é o que é e não dá para inventar muito. Tudo o que eram zonas que me favoreciam, eu dava o meu melhor. Tudo o que eram subidas que rebentavam comigo, eu ia a pé. Desta forma eu consegui equilibrar o esforço por volta.
Aos 6km, isto é, a primeira passagem pela tenda, parei uns minutos para ver o estado do pneu traseiro, deitar o lixo fora e comer uma aveia. Arranquei e aos 9,5km, na segunda passagem pela tenda, lembrei me de repor as PowerBar.
15h45 - 3 voltas
Com média de 45 minutos por volta, comecei a lapidar os ponto críticos da volta.
- Passo o check point da recta da meta e subo a rampa da praça de toiros.
- Descer o lancil e curva grande e larga para a direita em asfalto. Subir lancil com rampa em cimento e ligeiro gradiente positivo. Passagem pela zona das tendas.
- Curva a 90 graus para a esquerda com duas lombas e descida acentuada em piso de madeira.
- Reta de 50 metros em piso de madeira flutuante e curva a 90 graus à direita com espaço em terra batida.
- Reta em terra batida.
- Gancho à esquerda em subida acentuada (subir a correr) e 30 metros depois outro gancho à direita com transição para calçada e entrada pela passagem de peões da ponte.
- Reta de 75 metros com estreitamento (largura do guiador e mais uns 15cm).
- Transição para calçada e descida super acentuada à direita a finalizar com curva apertada à esquerda com camber (não travar)!
- Reta a acelerar com passagem debaixo do viaduto.
- Esquerda com subida acentuada em piso de madeira (levantar a roda da frente para bater no início da rampa de moda a não perder velocidade, pois desta forma a suspensão não afunda) com transição para calçada e descer lancil.
- Reta de 5 metros e subir lancil com calçada e descida suave com rampa de madeira estreita a acelerar, entrando em piso tipo paralelepípedos não escorregadiços!
- Reta a acelerar com curva a 90 graus à direita larga, a acelerar.
- Reta a acelerar com curva aberta à direita em alcatrão!
- Curva muito aberta à esquerda em aceleração durante 400 metros e termina com esquerda larga em subida (feita na medida do possível).
- Subida acentuada até à igreja com curva e contra curva suaves e longas, seguida de curva mais apertada à direita com reta de 150 metros e finaliza com gancho à direita em calçada e outra reta de 50 metros.
- Fim de subida com chegada à igreja com miradouro e posto de abastecimento. Nota: a minha estratégia para esta subida era descansar pois é muito longa.
- Apanhar a garrafinha de água da mão do escuteiro, beber o máximo sem parar, atirar para o saco do lixo a garrafa de 250ml com a água que sobrasse e acelerar para a zona técnica 1.
- Entrar para singletrack de terra batida com descida com imensos sulcos a finalizar com curva à direita seguida duma contra curva cega. Nota: a descida é feita a travar apenas com o travão da frente. Atenção às raízes!
- Reta de 20 metros com curva em subida acentuada à esquerda em areia (subir a pé). Nota: atenção às raízes!
- Clareira enorme e feita em velocidade cruzeiro.
- Transição de terra batida para passeio pedindo em cimento com curva estreita a 90 graus à direita.
- Reta com subida suave. Ligeiros desvios e curva larga para a direita e para a esquerda em alcatrão.
- Outra direita e esquerda em piso degradado seguido de reta em terra batida. 20 metros depois há passagem pedonal (descer e subir lancil).
- Singletrack em piso compacto com curvas suaves e rápidas.
- BOSS FIGHT - singletrack termina em descida suave com gancho para a direita, feito em areia. Duas hipóteses: entrar rápido, bloquear a roda de trás e apenas guiar a bike para a saída; abrir tudo para a esquerda e atirar me para a direita, antes do apex e com sorte só punha um pé na areia, na saída do gancho.
- Reta a subir com passagem pedonal, com rampinhas, seguido de bancos de areia. Ganhar balanço para compensar a drástica perda de velocidade.
- Singletrack em subida suave para boss fight.
- BOSS FIGHT 2 - Piso compacto nivelado a entrar para gancho à esquerda em areia. Gancho a descer 1m a 1.5m com saída suave para singletrack em piso compacto. Não há margem de manobra.
- Curvas suaves e atenção com árvores baixas sinalizada! Baixar a cabeça.
- Entrada para clareira em descida rápida. Descer lancil e pedalar o máximo possível no percurso pedonal.
- Curva à esquerda e 200m de subida íngreme. Nota: subir a pé e chegar o mais à direita.
- Chegada ao topo e subir lomba com acesso a clareira.
- Blá, blá, blá..
Durante a prova constatei que os meus pneus Michelin Grip'R 2.1" são fraquinhos pois onde eu fazia certas curvas a fugir, tinha imensa gente de equipas a passar por mim sem dificuldades. Como os pneus tinham 50mm de largura, os bancos de areia e zonas de brita eram um terror.
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